sábado, 31 de dezembro de 2011

Montoeira


O ano acabou
Minha retrospectiva é triste e alegre
Igual a mim
Sou triste e alegre
Tenho uma queda pelo drama
Mas não largo a alegria

Na leveza do esforço amei quem deveria ser amado
Abri mão de quem não queria ser amado
Presenciei meu fracasso
Brindei minha vitória
Iniciei projetos eternos
Finalizei etapas

Palavras duras ainda ressoam nos meus ouvidos
Quero expulsa-las para não machucar mais
Quero mantê-las para aprender mais

Olhares iluminaram meus dias
E de novo as palavras, mas dessa vez doces, curaram
Toques, mesmo tão poucos, estão tatuados eternamente

Sons de crianças, adolescentes, famílias, músicas, amigos
Livros, medos, artes, erros, acertos, tentativas, doces e amores
Escutei todos os dias
Triste e alegre essa foi minha melodia

Fui fraca e logo rude
Fui forte e logo boa
Não lutei pelo o que acredito
Não segui o meu sonho
Calei-me, paralisei
Não o bastante inventei outro sonho
E uma nova maneira de acreditar no que acredito

E essa montoeira de coisa chamada 2011 foi boa?
Repito, foi triste...e alegre...



quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Filmes - Sugestões

Recentemente assisti a 4 filmes realmente bons, pelo menos no meu gosto... e comecei a saga Grey's Anatomy...que até agora está sendo divertida e interessante. Tirando o primero, os filmes são relativamente velhos, vocês já devem ter assistido ou ouvido falar sobre eles, mas se tiver na dúvida aqui estão minhas sugestões.

Assisti o tão esperado: As aventuras de Tintin



Quase perfeito! Só não foi tão perfeito porque aconteceu muita coisa tudo ao mesmo tempo. Parece que existia uma urgência de colocar tudo de uma vez só. Acho que com tanto filme que poderia ser apenas um e são dois Tintin poderia ter pego o mesmo embalo. Enfim, não deixe de assistir e no cinema! Ele merece ser assistido lá.

E as 3 sugestões de amigos: 



Lady Chattterley - 2006

Muito bom, uma fotografia excelente e que faz muito parte da história. Tipo o que se vê é o que a personagem está vendo pu passando a perceber. Achei isso demais. No começo do filme você a ficar entediada como a personagem e depois... O filme é baseado no livro de D. H. Lawrence - Lady Chatterley's Lover, mas não pense que você vai ter um retrato exato do livro. O filme trabalha mais o relacionamento dela com seu amante, por isso fiquei com muita vontade de ler o livro.


Breaking and entering - 2006

Encarei assistir o filme só pelos atores, gosto muito do Jude Law e da Julliete Binoche, mas não tinha grandes expectativas. No final o filme me surpreendeu com essa coisa de relacionamento, mentiras, problemas sociais e vida dos personagens.


Stepford Wives - 2004

Não é um filme que eu diria UAU você tem de assistir, porque nem eu tenho paciência com filmes assim, mas estou sempre me dando uma segunda chance de gostar e acabo me surpreendendo com as coisas que normalmente não gosto. Filme leve e com um conteúdo com bom, dei algumas risadas e não me arrependi. Em resumo bom desse filme seria, uma feminista que precisa de um equilíbrio hahaha. 


Bye!!

@roseguedes






sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal 9 - O chester de Natal


O chester de Natal

20 de dezembro de 2009
Silviano Santiago (*) - O Estadao de S.Paulo
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, poema VIII
A infância alicerçou a noite de Natal no território feminino da família. Por mais que a mamãe e as professoras se esforçassem por me convencer que o Natal era a festa do Menino Jesus e do Papai Noel, não me sentia incluído na noite e papai não se julgava à vontade para entregar a cada um, pessoalmente, os presentes escolhidos por ele e comprados com sua grana.
À mesa, mamãe era a dona do chester assado. Ao manobrar com rara felicidade o garfão e a faca afiada, destrinchava a ave rechonchuda como se fosse um açougueiro de plantão. Distribuía as partes nobres pelos vários pratos, demonstrando conhecimento das preferências individuais. Sabia até quem desdenhava a farofa incrementada do recheio, minha favorita. Ao lado do pinheiro iluminado, ela fazia questão de que a lembrança natalina passasse por suas mãos antes que o legítimo destinatário dela tomasse posse. Oferecido o presente, sapecava delicados beijinhos no agraciado.
Minhas duas tias por parte de pai eram solteironas e lhe faziam coro. Soltavam as exclamações de praxe e, com o movimento do pescoço e dos olhos, indicavam a pessoa que as provocavam - mamãe. Felicitavam o irmão mais velho por ter esposa tão carinhosa e prendada. Ele tinha tirado a sorte grande. Dos avôs, restava vovó, mãe dela, que ficava sentada na cadeira de balanço, alheia aos familiares e ao mundo. Apesar de entregue à doença de Alzheimer, também entrava na roda. Ao mais insignificante dos brindes levantados à mesa, os olhos das três mulheres não deixavam de enquadrá-la.
Podem imaginar a razão pela qual durante e depois da ceia de Natal eu reunia forças para dar apoio estratégico ao papai. Meu respaldo não se manifestava por atos. Só por palavras de agradecimento e de afeto, sussurradas no seu ouvido. Eu não recusava as coxas do chester, que me cabiam por gosto e por decisão materna. Seria grosseria pedir para trocá-las por outro pedaço da ave. Papai Noel não deveria perder a identidade ancestral, mas como entregar de volta às mãos paternas o presente oferecido pela mamãe? Não se justificava o desrespeito à função assenhoreada por ela. E mamãe muito me amava (disso não tenho dúvida).
Tanto mais me amava porque cheguei tarde à vida dos dois. Teriam formado o clássico casal sem filhos, e dele sido feliz exemplo, se o ginecologista da mamãe não tivesse batido as botas e ela não tivesse encontrado substituto à altura. Depois de ter acolhido a nova cliente na Clínica de Reprodução Humana e escutado as queixas da futura paciente, o Dr. Augusto Severo não só lhe enxugou as lágrimas com palavras de fé e esperança, como lhe garantiu o êxito do procedimento médico, se feito, é claro, sob sua responsabilidade.
Dizem que mamãe não esperou a hora do jantar para soltar a bomba. Tão logo papai cruzou o batente da porta do apartamento, ela saltou para os braços dele, conduzindo-o à sala de visitas. Passou-lhe detalhes e mais detalhes sobre a possibilidade do filho poder ser gerado por inseminação artificial. Palavra do novo ginecologista. A partir daquele momento, tudo dependeria da aquiescência do marido, e era por isso que tomara a liberdade de incluí-lo na próxima consulta ao Dr. Augusto.
No correr dos anos, arquivei na memória o que escutava e o que adivinhava no escutado. Não havia como esconder o sol com a peneira. Mamãe se sentia injuriada por não poder ter filho. Não aguentava mais os comentários da mãe, que lhe exigia um neto pelo menos. Não era fértil o sêmen do papai. Por haver paralelismo entre as lições que recebia na escola sobre sexualidade e as novas domésticas sobre minha concepção, eu estranhava a fecundação sem o sentimento do amor. Não é o êxtase celestial dos cônjuges que impregna o futuro bebê de felicidade? Eu era produto das manipulações do Dr. Augusto e como tal me sentia.
Bebê de proveta. A expressão era e ainda é chocante. De tal forma chocante, que os programas de televisão procuram suavizá-la, recobrindo-a com humor em sketches apimentados. Não dizem que rir é o melhor remédio? Para pai e filho não era.
Papai se sentia infeliz com a viravolta familiar criada pela esposa aos 38 anos de idade. Graças ao louvável know-how do Dr. Augusto, o famoso advogado criminalista se transformara num chefe de família, cujo pátrio poder tinha sido exposto à visitação pública dos inimigos. Enquanto o casal consegue manter o silêncio conivente, não se sabe a que cônjuge recai a culpa pela esterilidade. Do momento em que, na maternidade, a barriga da mãe explode e expulsa o bebê, resta pouca dúvida, e surgem outras dúvidas.
Teria sido eu procriado in vitro com o sêmen paterno? Dificilmente. Houve consulta e recurso a um banco de sêmen? Certamente. Qual é o nome do doador do sêmen fecundo? Era solteiro e hoje é casado? Já morreu? Sabe que eu existo?
Para evitar angústia maior, paro de desdobrar as dúvidas em perguntas. Vou direto ao que passou a inquietar-me do momento em que me julguei dono do próprio nariz. Como nenhum ser humano brota do nada, queria conhecer meu procriador.
Já perceberam que não fui menino de coragem. Tampouco fui adolescente atrevido. Durante as sucessivas ceias de Natal, quando éramos mais de três à mesa, minha indisciplina se manifestava pelo sussurro de palavras afetuosas no ouvido do papai. Eram de agradecimento aos vários presentes que mamãe me entregara. Na puberdade, poderia ter-me dado ao luxo da malcriadez ou dos comentários estapafúrdios. As tias solteironas compreenderiam meus atos de insubordinação, tanto mais porque vinham de onde vinham, e a vovó, bem, ela nem se daria conta do pirralho que lhe fazia concorrência em diabruras. Realmente, não sou capaz de atos claros, que carreiam significados precisos.
A adolescência sedimentou no território feminino da família a noite de Natal.
Ao atingir a maioridade, ganhei coragem e fiz a pergunta que não queria calar. Papai se fechou em copas. Mamãe virou um túmulo. Não havia porta no mistério familiar, a não ser a que se abria para a felicidade alheia. Vovó tem seu neto, as tias solteironas, seu sobrinho e mamãe, seu filho. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Natal 8 - O presépio


O Presépio

20 de dezembro de 2009
Sérgio Sant?Anna (*) - O Estadao de S.Paulo
Esse homem vinha caminhando desde alguns quarteirões mais abaixo na rua das Laranjeiras, às dez e meia da manhã dessa sexta-feira de dezembro, para seguir prescrições médicas, a fim de reduzir o peso, gorduras no sangue e o estresse, e usava camiseta, bermuda e tênis. O seu caminhar traía um neófito na coisa, ele mostrando-se meio desalentado com o exercício físico, para, de repente, os seus passos se tornarem mais rápidos, ansiosos, como se tivesse pressa de chegar a algum lugar. No entanto, esse homem estava de férias, férias decididas pela própria empresa onde trabalhava, as Lojas Panamericanas, depois de uma tarde em que sentira um mal-estar, com pressão alta, suores, vertigem. E todos já vinham percebendo que ele andava meio alterado, oscilando entre o ensimesmado e o irritadiço, quando uma de suas funções como assistente de promoções e relações com os clientes era funcionar como para-choque nas reclamações dos fregueses, que ocorriam com frequência.
O médico do plano de saúde a que a empresa filiava seus funcionários dera a ele as prescrições típicas a homens sedentários, recomendando-lhe, além de um regime, que caminhasse com ritmo em algum lugar aprazível, e durante as caminhadas evitasse pensar em problemas. Como se isso fosse possível.
Um de seus problemas e preocupações maiores era a desconfiança. Ele desconfiava que as férias eram apenas um intervalo de passagem para a demissão, quando ele não pudesse alegar que fora posto na rua por problemas de saúde. Nem mesmo lhe deram uma licença médica, mas as férias, pura e simplesmente.
Ele desconfiava que aquela demissão já vinha sendo tramada pelo chefe de promoções e vendas, que, ele sabia, não gostava dele, com aquela ojeriza que os chefes podem ter pelos subordinados saidinhos demais, metidos a sabidos e com uma ambição que deixa os superiores prevenidos.
Ele vinha subindo a rua pelo lado direito, para não passar bem junto às portas das Panamericanas, pois sentia como uma derrota ser visto por alguns dos funcionários das Lojas, caminhando naqueles trajes em pleno período natalino, quando o seu departamento e todos deviam estar a mil por hora.
Certo que ele poderia escolher um outro local para andar, mas como alugara um apartamento barato na rua do Catete, a subida da rua das Laranjeiras até o Cosme Velho lhe parecia uma escolha natural para a caminhada.
Ou a verdade maior era que ele sentia uma compulsão de observar do outro lado da rua, oculto pelo tráfico e pelos pedestres, as Lojas Panamericanas?
Passando diante das Lojas, ele também nunca deixara de pensar naquilo que fora o seu maior sucesso, e estava ali à vista de todos, e naquele que fora o seu maior fracasso.
Às vezes não é preciso pensar muito para se ter boas ideias, pode acontecer até o contrário, como aconteceu com ele. Tratava-se de uma reunião, ainda no mês de outubro, para a escolha de uma ideia-chave, norteadora de todas as outras ideias, para a campanha do Natal de 2009, avaliando-se a necessidade de se recorrer para isso a uma agência de propaganda ou não.
Além dele mesmo, Rogério, estavam presentes o seu chefe no departamento de promoções e vendas, Deprov, e a secretária do superintendente.
Os três concordavam que o diferencial das Panamericanas era vender um pouco de tudo a preços mais acessíveis que os concorrentes, e que isso devia ser ressaltado.
Rogério estava fazendo risquinhos numa folha de papel, quando se surpreendeu dizendo, num tom de voz normal, até baixo, como se pensasse consigo mesmo:
- Não importa o valor da sua dádiva, mas o tamanho do seu amor.
Houve alguns instantes de silêncio, pela surpresa, até que a secretária da Superintendência falou, como que para certificar-se do que havia escutado:
- O que o senhor disse?
Rogério repetiu, agora com maior firmeza, porque tinha, nesse pequeno intervalo, convencido a si próprio de que sua frase era um achado:
- Não importa o valor da sua dádiva, mas o tamanho do seu amor.
- Bonito, isso - disse a secretária.
Quando se soluciona muito rapidamente uma questão, sempre parece que ficou faltando alguma coisa.
- Uma frase dessas não pode induzir os fregueses a comprar os produtos mais baratos? - disse o chefe do Deprov.
- É, pode ser. Precisamos pensar nisso - disse a secretária.
- Talvez algo mais discreto, mas eficaz - disse o chefe. - O que vocês acham dessa: Aqui você tem tudo para um Natal feliz?
- Acho boa - disse Rogério, diplomaticamente. - Mas com a frase A (ele evitou dizer minha), se for a escolhida, poderemos colocar junto com ela, na fachada da loja, os três reis magos adorando o Senhor na gruta de Belém e, como todos sabem, oferecendo-lhe ouro, incenso e mirra. No alto, a estrela guia.
O coração de Rogério batia, pois, de novo, uma ideia viera límpida à sua mente, como se primeiro surgissem as palavras e depois o pensamento. E ele deixou que isso continuasse a se desenrolar até o fim:
- As Panamericanas estarão levando uma mensagem a toda a cidade, reforçando o verdadeiro espírito de Natal, tão esquecido.
- Realmente pode ficar bonito - disse a secretária da Superintendência, que, como o chefe de departamento, vinha anotando tudo o que se dizia na reunião, e era arguta o bastante para saber que ali se travava, veladamente, uma disputa entre os dois homens. - E como pode vir a ser uma ideia norteadora de toda a campanha de Natal - ela prosseguiu - o senhor superintendente gostará, é claro, de dar a palavra final. Pensando no valor da frase do senhor Rogério e na objeção do senhor Xavier, quem sabe se possa chegar a uma frase que atenda a ambos os requisitos.
Temendo que o sucesso lhe fosse subtraído, o próprio Rogério apresentou uma alternativa:
- Um Natal do tamanho do seu amor.
- Bem - disse Xavier, embarcando no êxito possível dessa última frase que, de algum modo, ele ajudara a encontrar: - É essa frase mais curta e não induz os fregueses a compras muito baratas.
O Superintendente das Lojas Panamericanas no Rio de Janeiro não hesitou em escolher a terceira frase, Um Natal do tamanho do seu amor.
Sem que pudesse ser considerada uma derrota do chefe, que no entanto acendera um sinal de alerta e reconheceu a antipatia que sentia pelo outro, esse fora o grande triunfo de Rogério, que ali, caminhando, a cem metros das Lojas, do outro lado da rua, podia ver o outdoor com a frase e ilustração, o que lhe aumentava um pouco a autoestima e dava-lhe um trabalho bom e concreto para mostrar na busca de um novo emprego, se fosse o caso.
Mas ali, nas Panamericanas, como em todo lugar, não se podia descansar sobre as conquistas, e logo ele foi chamado, para, entre outras tarefas de rotina, participar da seleção de dois Papais Noéis que se revezariam à entrada das Lojas, durante os vinte dias que antecediam ao Natal.
Diante do seu êxito recente, ele ficara confiante demais no poder das suas ideias e, na reunião preparatória para aquela seleção, estando presentes ele, Rogério, o chefe do Deprov e um assistente do departamento de pessoal, ele retirou do bolso um papel em que anotara uma ideia na noite anterior e disse:
- Por que não contratamos como um dos Papais Noéis um homem de cor?
Fez-se um silêncio absoluto e o chefe do Deprov aprumou-se na cadeira e encarou Rogério com um olhar muito atento. Já o rapaz do Pessoal, um estudante de direito, olhava para um e para outro, também muito atento, mas sem dar nenhum sinal de que pretendia falar, pelo menos por enquanto. Finalmente o chefe disse, com uma voz absolutamente neutra:
- Com um homem de cor, o senhor quer dizer...
- Sim, um Papai Noel negro.
O chefe do Deprov pareceu animar-se e mostrou-se mais amável do que habitualmente ao falar com Rogério:
- O senhor poderia dar suas razões para essa sugestão?
Rogério notou essa amabilidade e procurou dentro de si mesmo a segurança de quando tivera a ideia, na noite anterior:
- Bem, mais de cinquenta por cento da população brasileira é no mínimo miscigenada. Não sei se há pesquisas a esse respeito, mas uma parte considerável dos fregueses das Panamericanas deve ter esse perfil. Não seria a hora de atrair esses consumidores ainda em maior número?
Como na reunião da frase, o chefe anotava tudo. E perguntou ao rapaz do pessoal o que ele pensava.
- Bom, não cabe a mim decidir - o jovem disse cautelosamente. - Só sei que entre as pessoas fichadas por nós e pelas agências de emprego para esse trabalho, salvo engano, não existe ninguém... de cor. E, ao que eu saiba, Papai Noel é um mito nórdico.
- Pois é - disse o chefe de departamento, sempre anotando, inclusive o que ele mesmo dizia - um bom velhinho branco, de barbas brancas, usando roupas vermelhas, distribuindo seus presentes num trenó puxado por renas no meio da neve branca. No mundo inteiro é assim, por que o senhor acha que devemos mudar isso logo aqui nas Panamericanas, senhor Rogério?
Agora ficava claro para Rogério que o outro viera lhe dando corda, com o intuito de comprometê-lo, mas lhe parecia que era tarde demais para simplesmente desistir, embora ele já desconfiasse que a ideia não era tão boa. O máximo que podia fazer era amenizar um pouco o impacto da sugestão.
- Bem, é apenas uma ideia, para ver o que os senhores pensam. Como no caso da campanha de Natal, propormos uma nova atitude a partir de nossa empresa. Já pensaram a quantidade de publicidade gratuita que poderemos obter com essa simples mudança, um Papai Noel negro? E o outro, branco, é claro - ele concluiu, lançando olhares para o estudante e o chefe, procurando um mínimo de cumplicidade. Uma cumplicidade que não veio.
- Senhor Rogério - disse o chefe do departamento, sempre anotando - Não sei se a direção da empresa está interessada nesse tipo de publicidade. Pessoalmente, não creio e não vou ficar em cima do muro: não gosto da ideia, por vários motivos. Mas vou me incumbir de levar a sua proposta, que anotei, à dona Hebe, secretária da Superintendência, que decidirá se deve levá-la ou não ao senhor superintendente.
A resposta que veio da secretária da Superintendência, já no dia seguinte, foi um não e uma ordem para que o assunto não voltasse a ser discutido.
Ele não foi mais chamado a participar do processo de seleção dos Papais Noéis e, significativamente, começaram a lhe passar apenas as tarefas que ele detestava: cuidar das reclamações e relações com os clientes. Qualquer pessoa que o observasse bem, notaria que ele estava nervoso e deprimido, culminando com aquele mal-estar.
A caminhada, em vez de desanuviar sua mente, o fazia repassar o seu sucesso e o insucesso, materializados agora a sua frente, do outro lado da rua, no outdoor e no som do sino tocado pelo Papai Noel que estava de plantão.
Apressando o passo, ele olhou em frente e foi então que reparou naquela cena, a mendiga recostada num muro, amamentando uma criança, o que causou nele repulsa, que veio juntamente com a raiva de que mendigos gerassem filhos.
Chegando mais perto, ele viu, com um fascínio misturado à aversão, que havia algo de falso e extravagante naquela cena, porque o garoto, com aparência de três anos de idade, era crescido demais para ser amamentado, e, na verdade, não havia vestígios de leite em sua boca, nem movimentos em sua garganta. E o seio que a mulher exibia era pequeno, firme e estava seco, e ela própria, que devia ter menos de trinta anos, não estava maltrapilha como seria de se esperar em sua condição. Devia ter ganhado de alguma jovem mulher, ou em algum albergue de assistência pública ou religiosa, aquele vestido com listras de várias cores, que ainda não havia desbotado de todo. Era um pouco justo e deixava as pernas da mulher visíveis até um pouco acima dos joelhos, e não era difícil imaginar que um ou outro homem se dispusesse a pagar para ficar com essa mulher, pois, apesar de algumas veias salientes, suas pernas não seriam desprezíveis para todos os homens, como certamente não o eram os seios. E, principalmente, nada estava sujo, já que eles se acomodavam sobre uma manta, e o short do menino, que não usava camisa, fora lavado havia pouco tempo, como se não fosse aceitável, para o cumprimento daquela cena, para a plausibilidade dos seus termos quase inadmissíveis, que o menino estivesse sujo.
O menino - que vai ver nem era dela - se mantinha naquela atitude viciosa, como se iniciado numa sensualidade prematura e ali representasse, num presépio em movimento, o seu papel ensaiado entre o obsceno e o sacrílego. E, de fato, a imagem de um presépio não era descabida nessa época natalina, quando as pessoas, em princípio, estariam mais vulneráveis aos sentimentos. Muitas pessoas poderiam cismar diante daquela cena, como Rogério, mas haveria também alguns a aceitá-la, pois nem todos eram tão céticos para ver naquilo uma fraude. Com as duas mãos, o menino acariciava aquele seio, em cujo bico às vezes roçava a boca, enquanto os seus olhos tanto podiam fixar o seio, como buscar no rosto da mulher sinais de aprovação e ainda passear esses olhos pelo entorno, que agora emoldurava, entre outras coisas e pessoas, Rogério.
Uns poucos segundos podiam abrigar muitos pensamentos e percepções simultâneos, e o olhar de Rogério também encarava a mulher bem nos olhos, e quando isso aconteceu a primeira vez, um pouco antes, ela já estava com os seus fixos nos dele e até mais do que isso: ela apresentava para ele uma expressão quase cínica, que significava, ou para ele parecia significar, entre outras coisas, que, por alguma força misteriosa da mente, ela sabia que tinha diante de si um homem que se sentia num momento especialmente frágil, ameaçado por todos os lados, com medo de ver naufragadas não apenas as suas ambições, mas também o que já conquistara, ainda que não fosse grande coisa. Um homem que talvez estivesse disposto a alguma transação com Deus, ou outra entidade, em que tivesse de despender uns trocados por grandes benefícios.
E quando ele passou bem próximo à mulher e ao menino, e ela recitou a sua fala marcada para aquele momento, não o fez com a humildade e convicção que seriam naturais, ou mesmo com a representação que torna o ato dos mendigos ainda mais lamentável. Ela desfiou o seu peito de uma forma desnaturalizada, com impassibilidade, como se tivesse um encenador crítico e entediado dentro de si, ou quem sabe nas imediações, com descaso pela audiência - embora não fossem poucos os que passavam e a desprezavam - talvez com a vaga esperança de que ali, no meio das pessoas, pudesse encontrar uma ou outra capaz de apreciar as implicações sutis de sua inflexão neutra:
- Cinco reais pelo amor da Virgem Maria e do menino Jesus, que aliviarão o peso do seu coração e pagarão a sua caridade com todas as riquezas e bênçãos no céu e na terra.
Nesse momento o menino revirara os olhos, como que para verificar o efeito causado em Rogério pelas palavras de sua mãe, e como se soubesse que elas se referiam também a ele próprio.
Rogério não pôde deixar de notar tanto a petulância no valor pedido como as palavras bem arranjadas como numa oração. E, ao que ele já apreendera visualmente, somaram-se essas palavras para formar uma cena completa, e então ele desconfiou, quase teve certeza, de que a mulher e o menino encarnavam ali na rua a Virgem e Jesus. Ou será que ele, Rogério, estaria se deixando levar por seu próprio arranjo natalino, visual e verbal? Do jeito que estava sua cabeça, nela tudo podia se abrigar.
Ele saberia retribuir com cinco reais ao espetáculo, não só, ou exatamente, por que percebera as particularidades da sua construção, mas sobretudo porque a mulher parecia dotada de poderes para decifrar que havia coisas que confrangiam demais o seu coração. Mas ele só trazia duas notas de dez e uma de dois reais e não se pede troco a mendigos, nem ele era um jogador ousado a ponto de apostar dez reais numa incerta graça divina, de que a mulher, apesar de tudo que havia de profano nela, seria a intermediária. E também já tinha um destino para aquele dinheiro.
Ele passou direto, mas a tempo de ouvir a voz da mulher, agora chiante como de uma serpente, que ela, de algum modo, conseguiu colocar bem próxima dos ouvidos dele:
- Posso fazer o bem e o mal. Se não quer Deus, que leve o diabo.
Ele acelerou bem o passo e percebeu que fugia, até por que passou da lanchonete onde pretendia tomar um suco e um café, e comer um sanduíche natural. E não querendo voltar atrás, deixou para parar numa padaria um pouco mais acima.
Ao fazer o pedido, no balcão desse estabelecimento, sentiu que estava ofegante e com o coração batendo mais forte, pelos passos desritmados e por causa das palavras da mulher.
Ele tinha um filho de onze anos, que morava com a mãe e a avó. Um menino que tinha problemas, um certo atraso, que se notava mais na dificuldade de aprendizado, e por isso frequentava uma escola especializada, que não custava barato. Ele gostaria de pensar que amava o menino como deveria, mas não conseguia enganar-se. E lhe doía perceber que o menino o admirava muito, ele não conseguia entender por quê, mas pensava que talvez fosse pelo atraso mesmo, que o impedia de ver o pai como era.
Ele sentia falta de uma companheira, uma namorada eventual que fosse, para confiar seus problemas, mas estava só desde a separação da mulher, havia alguns meses, e o lugar onde ele teria mais possibilidade de conhecer alguém que tivesse consideração com ele, seriam as Lojas Panamericancas, entre funcionárias menos graduadas, mas nas Lojas era impensável que funcionários se relacionassem nesse nível com funcionárias ou freguesas.
Ao deixar a padaria, depois de comer um pão na chapa - ali não havia sanduíches naturais - e tomar um suco e um café, ele tinha quinze reais no bolso. Parou numa banca e era significativo que, em vez de utilizar a nota de cinco para pagar o jornal, que ele comprava para examinar os classificados, ele utilizasse a nota de dez.
A praga da mulher ainda rondava a sua cabeça, e, entre os vários aspectos de sua vida que ele temia pudessem ser alvo de maus presságios, um dos maiores era o medo de empobrecimento - ele temia até a penúria - que atingiria em cheio o filho, a começar pela escola especial
Já ao sair de casa, ele planejava fazer um jogo na mega sena. Havia uma casa lotérica um pouco mais acima, na rua, e outra mais abaixo. Quando decidiu descer, ele já resolvera dar cinco reais à pedinte. A decisão veio da seguinte forma: primeiro dou os cinco reais à mulher e, depois, transformada a maldição em bons votos, passo no banco para retirar mais um pouco de dinheiro e fazer o meu jogo com sete ou oito dezenas.
Depois de ter descido um pouco mais a rua, ele procurava agora avistar a mulher e o menino na calçada, onde os deixara, e, não os avistando, sentiu aflição com a mexida nas peças do jogo, como se ela tornasse inviável ele mudar o seu destino. Por fim, acabou por avistá-los, só que a cena havia mudado. Agora o menino dormia sobre a manta, e a mulher, de perfil para Rogério, conversava com um homem bem moreno, de bermudão, sandálias havaianas, camiseta, os braços tatuados.
Rogério então parou por completo e ficou observando os dois e ela tocava no braço dele, com familiaridade. Talvez pelo fato de sentir-se observado, e com a cautela dos que costumam ser vigiados, o homem virou-se na direção de Rogério e olhou-o de cima a baixo, um átimo antes de a mulher fazer o mesmo. Rogério desconfiou que o sujeito já estivera ali por perto quando ele subira a rua, e devia ser o protetor, ou o explorador da mulher e do menino e, vai ver, o responsável, pelo menos em parte, pelo ato que eles encenavam na rua.
Rogério não estava nada bem, estava mais impressionável do que nunca e com presépios na cabeça, e agora via o seu próprio presépio e sua frase sobre o amor destacados nas Panamericanas, como um letreiro de cinema, e cogitou, pela maldição que antes lhe fora lançada, que aquele homem podia representar, naquele conjunto todo, uma espécie de anticristo, ou pai do anticristo, que seria o menino, e teve medo. Quis então atravessar a rua, mas o homem fez isso antes dele e sumiu no meio dos pedestres.
Só restava a Rogério seguir em frente e ele fez isso com passos decididos e olhos fixos na mulher, e logo estavam face a face. Viu que ela estampava de novo um sorriso cínico e movimentava os lábios meio preguiçosamente, pronunciando, baixo, uma oração indistinta, que Rogério pensou que podia ser tanto de súplica como de ameaça, numa língua que poderia não fazer sentido.
Parou então de olhar para ela e caminhou com passos ainda mais firmes. E, ao passar pela mulher, estendeu-lhe não uma e sim duas notas de cinco reais e seguiu em frente, com o coração pulando pela boca e sem olhar para trás, com a certeza de que fizera o que tinha de ser feito, representassem ela, o menino e o homem fosse lá o que fosse.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal 7 - Anjos de Natal


Anjos de Natal

20 de dezembro de 2009 | 0h 00
Ronaldo Correia de Brito (*) - O Estadao de S.Paulo
Em novembro, pela nossa casa do sertão passavam os mascates com malas de quinquilharias: caixas mágicas cheias de belezas coloridas, interditadas aos rapazes. Eu olhava de longe os fetiches femininos, deslumbrado com espelhos, fitas, bicos, rendas, batons, ruges, travessas de cabelo, diademas, pulseiras, anéis, perfumes em vidrinhos minúsculos, cortes de tecidos finos, agulhas, linhas e bordados. As mulheres gastavam o dinheiro economizado em um ano, nos adornos que realçavam suas belezas agrestes. Dois meses de trabalheira fabricando queijo se transformavam num anelzinho de ouro catorze, com pedrinha de rubi falso, engendrado por ourives de Juazeiro do Norte. Na Noite de Festas, mesmo que não saíssem de casa, ostentavam um mimo dourado, pendente das orelhas ou brilhando no dedo anular. E os maridos, austeros como as pedras, deleitavam-se com o aroma adocicado de um perfume francês, no corpo de esposas que normalmente cheiravam a vacas e cabras.
Em dezembro começavam as chuvas. De um dia ao outro o mundo se tornava verde. O calor diminuía e as formigas de asas abandonavam os formigueiros em voos nupciais, cobrindo a cidade de ultraleves e pó de asas que o vento carregava nos redemoinhos, atravessando frestas de portas e janelas. Não se lustrava os móveis com óleo de peroba, porque as asas das formigas, soltas e esvoaçantes, grudavam em tampos de mesa, aparadores, armários, dando trabalho em removê-las. Dezembro era um mês de grandes trovoadas. Abriam-se as sementes das barrigudas e ciumeiras. Nuvens de lã branco-opalescente caíam do alto sobre nosso mundo, levando-nos a imaginar a neve e o Natal, uma festa que sempre me pareceu alada, repleta de anjos, borboletas, beija-flores, formigas voadoras e muitos presentes, dádivas e ofertórios.
Minha avó paterna, Maria de Caldas, batia sessenta ovos numa grande tigela de barro, para os pães-de-ló. A velha receita portuguesa adaptava-se aos ingredientes da região: em vez de farinha de trigo, ainda chamada farinha do reino, a goma de mandioca. O vinho do Porto não passava nem de longe pelo nosso bolo. Essa iguaria fina se reservava à consagração do sangue de Cristo, nas missas de domingo e dias santificados. Dona Maria de Caldas arrumava os pães-de-ló de goma numa mesa coberta por toalha de linho, bordada em crivo e pontos cheios. Num vestido especialmente costurado para a Noite de Festa, o cabelo penteado e preso, esperava os afilhados, que chegavam sempre à boca da noite. Eles pediam a bênção e recebiam um presente modesto, quase sempre sabonetes embrulhados em papel de seda ou dinheiro dentro de um envelope. Comiam pão-de-ló, bebiam aluá de abacaxi, sentavam, conversavam. Os bolos de goma de Maria de Caldas eram dádivas ao Menino Deus.
Dona Dália Nunes de Brito, minha avó materna, nunca se esmerou na arte culinária. Seu mimo de Natal para os netos consistia num pequeno presépio cujas figuras eram confeccionadas por ela mesma com a lã do arbusto ciumeira, ou da árvore barriguda, que parece algodão, sendo mais macia e dourada. O pouco tempo livre de que ela dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava naquele artesanato minucioso, dando vida a carneiros, bois, burrinhos, camelos, anjos e pastores. A leveza da pluma emprestava às figuras uma natureza celestial e etérea. Eu sonhava que os bichinhos fugiam pela chaminé escura da casa da avó para uma festa no céu, na noite de Natal.
Minha avó possuía um Jesus Cristinho de madeira, corado e risonho, vestido numa camisa de seda, que fora esculpido lá longe em Portugal e recebido de presente da nossa tia-avó Nizinha. Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, ele tinha os mesmos dons de qualquer menino homem. Nossa tia Alzeni achava os genitais uma profanação e ameaçava castrar o Deus Menino, livrando-o de sua sexualidade. Sempre que passávamos diante da lapinha, levantávamos a saia e olhávamos o sexo do Menino, comparando-o ao nosso. Era difícil imaginar que a inocente criatura deitada nas palhas da manjedoura se tornaria o Senhor Crucificado, suspenso na parede da sala e vigiando-nos com olhos bondosos.
Mais bonita do que a lapinha de nossa avó Dália, só mesmo a das três irmãs do alfaiate Zé de Rita, solteironas famosas no Crato. O ano se tornava pequeno, sem tempo suficiente para elas construírem a cidade cenário que ocupava a sala principal da casa onde moravam. Havia de tudo naquele universo miraculoso: uma Jerusalém em miniatura, montanhas, lagos com cisnes e peixes, exército de soldados romanos, vilas, cercados, animais domésticos e selvagens, florestas, campos, pastores e pastoras, sol, lua, estrelas e cometas, anjos e santos. Toda essa representação do mundo se distribuía em três planos: o superior divino; o intermediário angelical; o terreal humano. Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse ali. Certa vez, cheguei a avistar uma Marilyn Monroe seminua, pendurada no galho de uma árvore. No primeiro dia de dezembro, as irmãs inauguravam a lapinha mirabolante. Exaustas pelo excesso de trabalho, sentavam em cadeiras e se divertiam com os rostos assombrados dos visitantes. Sempre imaginei que o único motivo de suas existências era encantar as pessoas com esse presente de Natal.
O cinema trouxe para o Crato o glamour hollywoodiano e a fantasia de natais com neve e pinheiros. As lapinhas perderam o prestígio, como o próprio catolicismo. O cineasta Fellini anunciou o fim da mitologia cristã e as três irmãs do alfaiate envelheceram. Num mês de dezembro em que milhões de formigas de asas sobrevoaram a cidade e uma chuva de lã de barriguda cobriu os telhados, elas não abriram as portas de casa. Pouco tempo depois morreram, uma após outra. Devem ter subido para o céu na companhia de anjos, querubins e serafins, os mesmos que habitavam seus presépios no plano intermediário angelical.
***
Num dia 24 de dezembro de qualquer ano desses - o que é o tempo, senão uma medida arbitrária? -, eu entrava na unidade de terapia intensiva do hospital onde trabalho, quando reparei numa paciente tocando a campainha de acesso. Pálida, as pernas inchadas, ela vestia uma bata hospitalar e carregava um soro na veia, sustentado por uma acompanhante. A cena era bastante insólita, pois o habitual é que pacientes entrem nas UTIs transportados em macas. Atarefado, esqueci as duas mulheres. Não sei quanto tempo se passou até que escutei um canto solene, fugindo aos padrões sonoros de respiradores, torpedos de oxigênio e monitores cardíacos.
A paciente que eu vira chamando à porta cantava um hino religioso, com os olhos fechados e um braço erguido para cima. O canto ressoava tão alto que seria impossível não ouvi-lo em qualquer esconderijo da imensa UTI. Senti um abalo nos nervos e lembrei as carpideiras do sertão onde nasci, encomendando os mortos. Mas a mulher de pernas inchadas louvava Deus e proclamava a vida. Postara-se junto ao leito de uma outra paciente, que respirava com ajuda de aparelhos. Disseram-me que a cantora de voz poderosa passara cerca de um mês nessa mesma terapia intensiva, em coma profundo. Havia se recuperado e saíra de alta para uma enfermaria. A doente para quem ela cantava agora fora sua companheira de quarto. As duas, em tempos diferentes, travavam um combate igual. Mesmo sem estar totalmente salva, frágil e cansada, ela viera cantar junto ao leito da companheira. Acreditava poder ajudar, pois descera aos porões da morte e conhecia o caminho de retorno à vida.
A segunda paciente também se curou. Está viva, contando a história que escrevo para vocês. Acredito no poder da ciência e da medicina. Também acredito na força salvadora do canto e em energias misteriosas que homens e mulheres de fé podem mobilizar. O Natal possui essa magia. Soterrado pelo entulho do consumo, vez por outra é possível despertar sua música. Como a voz do Anjo da Ressurreição, ou a dessa mulher de pernas inchadas que vence a própria morte cantando. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Natal 6 - Natal de peixes dourados


Natal de peixes dourados

Raimundo Carrero (*) - O Estadao de S.Paulo
Naquelas manhãs de verão, quando começavam a enfeitar as árvores, e às vezes chovia à noite, se não à tardinha, eles precisavam chegar ao rio antes que os peixes acordassem. Peixe dorme, Matheus? Acho que dorme, não é? Ninguém consegue viver só de olhos abertos. Peixe não é ninguém. E é o quê? Sei lá, você é que fica falando assim e todas as pessoas falam assim. Eles queriam peixinhos dourados para dar à mãe. De presente. E naquele dia. Era naquele dia em que os peixinhos dourados passavam pelas águas de Arcassanta uma vez por ano. Eles sabiam, somente eles sabiam. E sabiam mais, muito mais: a mãe ficaria encantada se tivesse no aquário um peixinho dourado. Mesmo que na casa não houvesse aquário. Compra um depois, não é? Compra? Quem compra?
Caminhavam pela estrada, uma faixa de chão sem plantas, terra avermelhada, raros espinhos e com muitas pedras pequenas, que eles só enfrentavam aos sábados e domingos, porque estavam descalços, distanciando-se da casa, aquela casa da mãe, com dois terraços, duas janelas e uma porta grande, suburbana; uma porta só, é verdade, mas uma porta grande. À frente da casa, é verdade, porque nas laterais havia mais duas. Menores. Distante da cidade, embora pudesse vê-la, de longe. E as luzes à noite eram tão fascinantes. Sobretudo quando piscavam, vermelhas e verdes, amarelas e azuis, às vezes acendendo e apagando, lá mais longe um trenó também feito só de luzes, parecendo sobrevoar as casas, os prédios e, ainda mais distante, as serras.
Agora não, agora não estavam descalços, usavam os sapatos da escola e reclamavam. Deviam chegar logo para a festa. Papai Noel existe? Não, Papai Noel, não, mas Cristo, sim. E que dia é hoje: de Papai Noel e de Cristo? Dos dois. Os sapatos machucam os dedos, mãe. Tem nada não, vai logo acostumando, ela ia dizendo e ajeitava as meias com o maior cuidado para não estragar as unhas pintadas de vermelho. Eu prefiro Papai Noel, que ele dá presentes, o outro vestia a calça no meio da sala, ajeitando as pernas, mexendo os joelhos. Cristo também dá presente, o problema é que a gente não vê. Então não vale. Vale, sim, vale. A mãe aproveitou para colocar perfume em cada um, embaixo das orelhas, na nuca, na sobrancelha. As meninas vão gostar, ela dizia, enquanto ele afivelava a calça de Sereno. E batom. A mãe usava um batom vermelho, igual às unhas, para a intensidade do sorriso.
Na primeira poça d"água, depois que dobraram a moita verde com mato molhado, espinhos e tudo, e de onde a mãe não podia vê-los, fizeram o combinado desde a noite anterior, no cochicho do quarto, desviaram o caminho, recolheram as minhocas que jogavam nos bolsos para inteiro desgosto da mulher. Vocês sujam a roupa de terra e de lama, por que, hein? Depois dá um trabalho imenso para tirar, ficava com os dedos ardendo de tanto sabão. Explicar mesmo, não explicavam, permaneciam só com aquela cara de simpatia magoada. Ela nem mesmo olhava para trás, esfregando a roupa no tanque. Agora, não, agora zelava pelas unhas e pelas mãos. E com uma espécie de cantiga na garganta.
Um tirou a camisa, corria. Matheus, ô Matheus, não entra calçado no rio. É mesmo, nem que eu fosse menor que você, não é, Sereno? E tira também as meias. E a camisa. Esse nome Sereno é que eu acho engraçado, fosse por mim, somente, ria sempre. Com respeito, viu, Sereno, mas com respeito. Deixa meu nome, ô, Matheus. Às vezes esqueciam até os livros e cadernos, tinham que voltar correndo para buscá-los. Friorentos, apressados, o coração batendo na garganta, mesmo com o sol. Acha os livros, vai, acha. Mas, enfim, encontravam, porque ali não passava quase ninguém. Havia as pessoas que passavam, raramente, muito raramente, e só por brincadeira essas pessoas escondiam os livros e os cadernos no mato. Mas, na hora de voltar, onde estavam? O quê? Os livros, os cadernos. Passavam tempos inteiros procurando, eu lhe disse que um dia ainda ia acontecer; vai, procura, procura, não precisa ficar pensando; era mais simples se a gente mesmo escondesse; não escondeu, agora procura, vai, procura.
De longe, Matheus podia ver o homem de barba acenando, a mão bem para o alto, distante, e ele, menino, só por brincadeira de menino, perguntando já vai, não é? E ouvia, embora uma voz que se misturava no vento e chegava aos ouvidos muito leve é, já vou, estou indo. Foi que um dia ele teve até vontade de dizer dê lembrança, e ficou calado, bastava o riso, esse riso brando nos lábios, até mesmo a mãe tinha esses lábios brandos, ainda um pouco marcados pelo batom, abraçada ao travesseiro, madrugada inteira, e ele tinha compaixão, porque a mãe precisava de companhia, isso precisava, com aqueles cabelos negros que se derramavam nos ombros, ele não ia dizer nada, nem mesmo ao irmão, que catava peixinhos dourados com minhocas, terra, areia e água, nem tanta água assim. Só fechava os olhos, só fechava os olhos mesmo quando descobria, naquela preguiça da madrugada, os seios da mãe saindo da blusa. A mãe merecia, tão bela, não era? Nunca reclamou, nunca ouviu a mãe reclamando, nem se lamentando nem chorando, nesse vale de lágrimas. O pai, quando teve um pai, chegava e dizia adeus e a mãe respondia adeus - estavam se despedindo antes de começar? O irmão devia nem perceber e ele, Matheus, dizia já vai, não é? O homem acenava. O homem, não; só uma forma de dizer - o rapaz, que vestia camisa comprida sem se importar com o calor. E sem chapéu. Ele nunca passava de chapéu.
Por que a gente vai dar presente de peixe dourado a ela? Porque peixe dourado é uma ave do céu, Sereno, e só a gente sabe onde pescar, peixe raro, ave rara, você agora entende, não entende? Entendo, mas você está mentindo, porque você mente demais, peixe não é ave. Você pergunta, não é? Por que você pergunta, aí eu minto. Não devia. Minto porque é melhor mentir do que não responder, entendeu? Tudo bem, entendi. Os dois tiravam as iscas dos bolsos, colocavam no anzol e passavam tempos inteiros esperando a presa, minutos seguidos, em silêncio, só os olhos avançando nas águas. Mornas, as águas, mal cobrindo os pés. Raros, os peixes, bem raros; e menos, muito menos, os dourados. Raros, não; tão raríssimos de não existir. Há, sim, Sereno; a gente não quer?, então há; quando você menos esperar eles chegam. Talvez não fosse naquela época. Naquele tempo. Ou naquele dia. Ou, quem sabe, não fosse nunca dia de pescar. Castigo de pescador é não ter peixe. Pensavam. Riam. E cada um a seu tempo; e cada um a seu modo; no seu instante. Os dois ali, juntos.
Daí que começou a esquentar, a esquentar, o sol reverberando nas águas e nas pedras. Ainda tiraram o lanche da bolsa, ralo bolo, apenas um pedaço de bolo para cada um, adquirido com dinheiro contado recolhido na feira, porque aquele não era dia de levar lanche para a escola, tudo ficava por conta da festa. Insistiram e insistiram. Até que chegou o sol posto, o sol das almas, hora, portanto, de voltar para casa. Somando os achados e perdidos tinham, ao todo, não mais que um punhado de piabas nos bolsos, dessas que mal suportam uma dentada. Voltaram. Como é que se diz? Olha aqui, mãe, peixinhos dourados para a senhora. Com certeza ela ia rir, bater palmas e pular. É a multiplicação dos peixes, meu filho? Peixe é na Semana Santa, não é, Sereno? Peixe sempre. Ensaiavam até as palavras da mãe. Era assim que talvez ela falasse, preparando a ceia de Natal, ainda tão pobre de não ter uma toalha para cobrir a mesa. Multiplicação de peixinhos dourados, mãe, era Matheus quem inventava.
Viram, os dois viram ao mesmo tempo, apesar das sombras que desciam: a pequena casa suburbana estava com todas as janelas e portas fechadas, no estranho começo da noite alumiosa, com luzes piscando, ainda que muito tímidas, na árvore. Papai Noel no telhado. E o silêncio, um imenso silêncio se espraiando nos confins. Entraram. Eles entraram quando perceberam que a porta estava somente encostada. Aquilo? A sala desarrumada, os móveis encostados nas paredes, restos de comida no chão, abertas duas ou três garrafas de sidra. Olhavam-se, olharam-se e avançaram pelo pequeno e estreito corredor. Não era difícil ver a cama pela fresta da porta aberta: os dois, deitados, a mãe com as unhas vermelhas, o sorriso largo, e o homem que acenava de longe, era ele mesmo, percebia, com a mão inteira sobre os seios dela, o segredo do peixinho dourado. 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Natal 5 - Eu deixaria as renas


Eu deixaria as renas

Nuno Ramos (*) - O Estadao de S.Paulo
-Eu deixaria as renas.
- Não. Nem elas.
-A barba branca, também.
- Não. Mistura na neve. Uma coisa some na outra.
- E a roupa, mistura no sangue?
- Claro, no sangue.
- E aquele saco enorme?
- O braço estendido ainda segura o bocal, tá vendo? Há presentes ali dentro, pacotes de crepom vermelho com nomes escritos em letra de forma. Tudo caído na calçada. Os transeuntes apontam: cuidado. Olha. Socorro. Ali, ali. Quem foi que fez isso? Ele mal conseguia andar. Fingia que tinha uma pança.
- Fingia que tinha um gorro com um pompom na ponta. O que eu faço com isso?
- Põe na cabeça. Usa pra
dormir.
- E as renas? Na minha opinião, eu deixaria as renas. Gostaria de deixar as
renas.
- Não, não, nem elas. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Natal 4 - Seu João e seu anão de estimação


Seu João e seu anão de estimação

Marçal Aquino (*) - O Estadao de S.Paulo
É na reforma da casa de L., 27, que Seu João e seu anão de estimação vão trabalhar neste final de ano. Seu João, pedreiro de mão-cheia, é um profissional muito requisitado. O anão posa de auxiliar, mas sua maior utilidade é entreter Seu João com suas histórias, enquanto uma parede sobe a prumo rigoroso ou ladrilhos se assentam num piso como se tivessem nascido ali.
Nem tente contratar um sem o outro. Não prospera.
O nome do anão é Nicodemos. Ele e Seu João se conhecem faz um tempão, desde que se encontraram no canteiro de obras de um shopping center - Seu João, na época, um jovem aprendiz; o anão, já com sua velha idade imprecisa, era o encarregado de distribuir água para a peãozada. Há alguns anos, os dois dividem uma casa modesta na Vila Anglo, onde levam vida de solteirões convictos, com menos luxos que manias. Os vizinhos demoraram um pouco para assimilar a dupla, e mais de um teceu aleivosias contra eles. Bobagem.
Seu João é um negro escuro de mãos ásperas e feições mansas, o cabelo cortado rente querendo ficar grisalho. A pele do anão tem uma cor indefinida. Cor de anão.
É L., 27, quem recolhe as informações sobre os dois e repassa para seu namorado, astrônomo e escritor diletante (mais interessado nas coisas que acontecem no céu do que naquilo que ocorre ao seu redor, na terra), na expectativa de que ele escreva uma fábula de final edificante, a tempo de participar do concurso de contos de Natal promovido pela universidade em que ambos trabalham. Há um bom prêmio em dinheiro para o vencedor - e L., 27, acredita que, depois da reforma, sua casa só fará sentido com a adição de dois ou três móveis novos. (Um detalhe, por ora secreto: o namorado planeja usar o prêmio para custear uma temporada em Antofagasta, no Chile, região que abriga o maior observatório estelar do mundo, o Paranal. Um lugar medonho, na orla do deserto do Atacama: 300 dias por ano sem a bênção de uma gota de chuva!)
Seu João nasceu num vilarejo árido no sertão de Minas, rapazola ainda partiu para tentar a sorte em São Paulo. Nicodemos ingressou na espécie humana num trailer de circo, em trânsito entre uma cidade e outra (nasceu com dois CEPs, como gosta de dizer); foi registrado no lugarejo natal de Seu João, daí a afinidade que surgiu de cara entre eles e converteu-se, com o tempo, numa amizade afetuosa e incondicional. Daquelas em que um cuida do outro com mais zelo do que de si mesmo.
Exemplo: noite dessas, na calçada de um bar da baixa Consolação, onde Seu João e Nicodemos compartilhavam uma cerveja, uns playboys que bebiam na mesa ao lado, sem nada mais para fazer de útil, encafifaram com o anão. A paciência de Seu João resistiu a cinco ou seis piadinhas (todas manjadas, por sinal), até que, de repente, ele se ergueu e desferiu um tapa violento na mesa de metal dos rapazes, entornando copos e derrubando garrafas no chão. O bar emudeceu; a impressão que ficou foi de que até o trânsito pesado da rua silenciou por um instante. Três dos playboys se desculparam no ato, sem graça. O quarto, o mais prejudicado pela cerveja derramada, se levantou e chegou a cerrar os punhos. Mas, num zás, a manopla cascuda de Seu João agarrou sua garganta e apertou até os olhos lacrimejarem num pedido engasgado de desculpas. Vexame adicional: enquanto o rapaz sufocava, sua bexiga não resistiu e tornou público que ele estava precisando ir ao banheiro com urgência.
Nesta época do ano, Nicodemos costumava defender uns trocados fazendo bico numa loja de brinquedos do Centro. Sua função era dançar vestido de Papai Noel em frente a uma caixa de som dois palmos mais alta, que emitia estridentes canções natalinas, e distribuir balas ao povo que passava diante da loja. Ele fazia um tremendo sucesso ali, arranjou até namorada com essa história. Mas teve de abandonar a ocupação, a pedido de Seu João, depois do que aconteceu em certa ocasião.
Foi assim: véspera de Natal, começo de noite, a loja já baixando as portas, um cliente ofereceu uma gorjeta graúda para o anão-noel fazer a entrega de um presente a uma criança num bairro distante. Uma criança deficiente, o cliente informou. Nicodemos aceitou a incumbência muito mais pela boa ação do que pelo dinheiro - não queria voltar tarde para casa, sabia que Seu João o esperava para a ceia. Só que deu tudo errado. O bairro era distante, não havia criança nenhuma, apenas uns marmanjos que se divertiram à custa do anão. Gente da pesada, que atirou para o alto à meia-noite. Nicodemos só foi liberado quando o dia de Natal clareou. Chegou em casa na hora do almoço, encontrou Seu João à beira de um colapso nervoso - já tinha feito uma romaria por delegacias e hospitais.
Por isso, neste final de ano, Nicodemos vai trabalhar com ele na reforma da casa de L., 27. Trabalhar é modo de dizer; na verdade, ele vai divertir o amigo com seus causos, um mais sem pé nem cabeça do que o outro.
O namorado-astrônomo transformou essa história num conto e o inscreveu no concurso da universidade. Não ganhou o prêmio. (Nunca ganharia, nem se fosse Tchekov ou Cheever ou Carver. Cartas marcadas: o concurso foi inventado para auxiliar um ex-professor, cassado pela ditadura, que batalha contra um câncer e a penúria econômica.) Como se os deuses fossem dados a estornos, porém, eis que o astrônomo foi convidado por uma revista científica americana a escrever um alentado artigo sobre novas galáxias, assunto que domina como ninguém. O valor do cachê, pago em dólar, é bem superior ao prêmio literário, só que ele ainda não tem certeza se viajará para espiar constelações no céu do Chile ou se comprará os móveis novos para a casa reformada de L., 27. Pela maneira como olha para ela, quando a tem em seus braços (milhares de estrelas em seus olhos!), eu me arriscaria a dizer que ele vai optar pelos móveis.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Natal 3


Waldick

20 de dezembro de 2009 | 0h 00
Manoela Sawitzki (*) - O Estadao de S.Paulo
e, principalmente, não ligar a televisão. No ponto em que chegou o mundo, minha filha, é até difícil escolher entre notícia boa e ruim. Porque ou é se prender a fiapo de esperança, pra logo se atinar que tudo não passa de enchimento de linguiça, que do jeito que essa cidade ferve nem o capeta aguenta, ou aceitar de vez que não tem saída pra lado nenhum. Como se diz hoje, tá tudo dominado, o mal tomou conta. Eu não. Vou é escutar o disco que o Armando tanto gostava. E olha que já não podia mais com aquele homem se esgoelando nos meus ouvidos todo santo sábado. Às vezes parece que fazia só pra me botar fogo nas ideias. Come uma rabanada, minha filha, come. Tão magra. O Armando parecia que queria me ver no destempero. Mulher braba, ele chamava assim sempre que me via passar pela sala encrespada com o tal do Waldick que ele tinha de ouvir todo bendito sábado depois do vinho do almoço. Só arriava o volume quando a viúva debaixo cutucava o teto com vontade. Nunca vi homem pra repetir o repetido que nem esse. Eia, mulher braba, venha cá, venha, me chamava bem assim o Armando, risonho, esticando o braço, já querendo safadeza. E eu respondia que tinha serviço na casa e passava reto. Cuida que queima os beiços, filha! Nunca me esqueci, minha falecida mãe, com ciência do afeto entre mim e meu noivo, me ensinou somente duas coisas na noite antes do casamento: que fizesse banho com velame do mato se ele chegasse com peste da rua, e que se não desse confiança pra homem encachaçado também nunca faltaria respeito em casa. Com o amor que vocês se têm, o resto todo se resolve, ela disse assim, me lembro como se fosse agora, prendendo uma cachopa de flor de laranjeira no alto da minha trança. Eu tinha um cabelo que caía pra baixo da cintura e o Armando reparava e ficava doente até se eu cortasse um nada nas pontas. Depois minha mãe nunca mais pronunciou palavra de intromissão na nossa vida. E a gente também foi pra estrada. E foi indo de um canto pra outro desse país, não que parava. Só calhou parar e ficar aqui mesmo. Pega mais dois ovos ali na frigidaire pra vó, pega? Então eu passava reto pelo Armando se ele fazia aquela cara endemoniada depois do terceiro copo. Cruzava já amolecida já, é fato. Mais moça, até que ia e me sentava no colo dele, mas bocadinho e cheia de vergonha. Nem olhar nos olhos podia que me desgovernava e acabava fazendo coisa que não se deve à luz da tarde, com criança acordada dentro de casa. Depois ia prestar contas na confissão. Obrigada, filha. Não que fosse beata, somente me aliviava e era bom. Purgava o ocorrido, tomava a comunhão e voltava chispando, com umas saudades sem cabimento do Armando. Que a gente nunca passou mais que um turno afastados depois das bodas. E na missa, teu avô não ia nem arrastado. Só pisou em igreja no dia do nosso casamento. Depois, com muita má vontade, nos batizados dos filhos. E ainda jurava que, nas três vezes, botou a mão no bolso da calça e fez figa pro padre. Desconjuro! E tua mãe, será que chega na hora? A Zilda não quis se casar em religião nenhuma, e por mais que lhe rogasse, nem te batizar aceitou. Pobrezinha da minha neta. Puxou ao pai, a Zilda. E ainda foi se juntar com o marido no comunismo. Deus me livre eu abrir a boca pra falar de Cristo no meio da ceia com aqueles dois. Natal, pro Armando, era comilança, beberagem e motivo pra festa com a família. Mais não lhe pedisse. Mais canela, filha? O Zé Luiz, teu tio, coitado, nunca teve boca pra nada, só ouvia e comia. Ou nem ouvia, né? Mas o Armando e a Zildinha... Eu preferia enfeitar meu presépio, pedir perdão pela heresia dos dois, orar quieta no quartinho, do que entrar naquela celeuma sem cabimento. Pois tem cabimento dizer que Jesus tinha coisa com a Madalena?! O Espírito Santo que nos proteja, amém. Nunca fui de falar demasiado. Nem nunca fui notória em nada, não, diferente de vocês, mocinhas de hoje, que já nascem pra ganhar o mundo. Quem veio munido com o dom do discurso, falava garboso, era ele. O Armando. Nem gostei dele no começo, quando a gente se conheceu naquela quermesse da paróquia de Palmeirina. Mas o diabo do homem falou tanto, mas tanto... Aquele vendia até água benta pro anticristo! Só vou aprontar aqui a farofa e te levo pra ver o menino Jesus, tá, filha? A vó comprou mais seis ovelhinhas pro rebanho esse ano, que duas a rapariga que ajuda na faxina espatifou ano passado. Na cozinha eu me distraio e me destaco até. Agora menos, que o Armando não tá mais pra pedir a feijoada dele. Seis meses já, sem o Armando. E os filhos vejo tão pouco. E só querem ir pra restaurante. Vou pra não fazer desfeita, mas sinto falta do meu tempero. Feijoada, o Armando pedia completa até um dia antes de ir. Aí ficava rondando o fogão, dando palpite, bulindo nas panelas, e achava jeito de me bulir também até que eu enxotasse com coça de pano. E saía se rindo todo, o danado. Tem dias que parece que escuto a risada dele. Ah, às vezes me arrependo tanto do tempo que ficava na frente da televisão vendo novela. Mais horas que a gente podia ter ficado juntos, né? Assunto nunca faltou, e às vezes era bom só ficar assim, encostados na poltrona grande, se balançando, olhando pra fora, a ver coisa nenhuma. Uma paz que nem sei. A gente se distrai da vida se é feliz, e acha que a felicidade nunca acaba, menina. Queria era ter espremido mais a fruta. Eia que essa vida é curta! Você é que não sabe. Tá achando triste o Waldick? É triste mesmo. Por isso não me agradava que ele escutasse, porque a gente vivia só alegria aqui nessa casa e me doía imaginar aqueles dizeres do Waldick na boca do Armando. Venha cá, venha ver com a avó se o peru já botou o tal do prego pra fora. Era sempre ele que cuidava do peru da ceia, de modo que nunca aprendi. Mas não desses que a tua mãe trouxe, todo esturricado, com prego dentro pra avisar do assamento. Criava o bicho quase o ano inteiro, no terreno de um compadre. Aí sempre pegava afeição e se negava a comer da carne na noite de Natal. Homem de coração assim, nunca conheci outro. Não tem namorado ainda não, tem? É nova, a cabritinha. Pois aproveite. Eu, na minha vida, só tive o Armando só. Mas tive foi muito. E digo, minha filha, ainda me faltou vida pra amar o tanto que podia, o safado do teu avô. Arre! tem vezes, assim, no calor do bafo das panelas, que parece que posso ouvir ele gritar ali da sala. Eia mulher braba, venha cá, venha,